Todo golpe de Estado bem-sucedido parece testemunhar a inteligência estratégica de seus líderes e sua capacidade de planejá-lo em detalhe e de aproveitar o momento certo para desfechá-lo. Toda tentativa de golpe fracassada assemelha os seus preparativos a conversas de botequim e sua realização a uma pantomima mal ensaiada e encenada por parlapatões.
Esta há de ser a inescapável sensação de quem tiver acompanhado os depoimentos à primeira turma do STF dos sete réus da ação penal 2.668. Como se sabe, ela apura as responsabilidades do núcleo central da trama golpista encabeçada por Jair Bolsonaro para impedir a posse de Lula nas eleições de outubro de 2022.
O indiciamento, em abril último, colocou o ex-presidente na longa lista de 20 ex-mandatários latino-americanos, de diferentes bandeiras políticas, que foram acusados por crimes cometidos em exercício do cargo, nos quase 40 anos em que a democracia se tornou a forma predominante de organização política na região. Desde 1984, pelo menos dez deles foram condenados e cumpriram ou cumprem pena; dez outros aguardam julgamento. A maioria responde ou respondeu por crimes associados a práticas de corrupção ou peculato. Alguns por abusos contra os direitos humanos.
O número elevado de ex-presidentes levados à Justiça atesta a importância crescente do tema da corrupção na disputa política, em toda a região. E, em alguns países, parece ser sintoma da instabilidade e do desgaste do sistema democrático diante de seus cidadãos. É o caso do Peru, onde cinco chefes do Executivo enfrentaram processos ao término de seus mandatos.
Não é o que ocorre aqui. O julgamento de Bolsonaro e mais seis réus, entre eles quatro militares de alta patente, atesta a existência de arcabouço legal apto a proteger a democracia contra investidas golpistas, ancorado na existência de lideranças públicas, de um sistema político forte e de uma sociedade civil atenta. A exposição dos crimes contra o Estado de Direito tampouco cria ruído na opinião pública.
Em artigo em O Estado de S. Paulo na segunda-feira (9), o professor Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, chamou a atenção para estudo recente de Cerda, Laterzo-Tingley & Venegas (2025), recém-publicado em APSA-Preprints, que trata do impacto dos processos criminais contra Bolsonaro no apoio do público à democracia. Eles mostraram que o indiciamento do ex-presidente aumentou o apoio ao regime democrático entre os eleitores que não votaram no ex-capitão, mas não alterou a opinião —também positiva— dos bolsonaristas sobre o sistema. Ou seja, julgar Jair pela tentativa de golpe não desgasta a democracia aos olhos dos brasileiros.
O estudo sugere também que o efeito positivo, encontrado entre os que garantiram a derrota do ex-presidente, tende a desaparecer rapidamente.
Importante em si mesmo, ao demonstrar a capacidade do sistema democrático de lidar com os que o ameaçam, o resultado do julgamento terá influência sobre as decisões eleitorais das forças de direita que ocupam o campo do antipetismo. Entretanto, a defesa da democracia não será suficiente para turbinar a candidatura de centro-esquerda e sustentar uma coalizão eleitoral progressista com chances de êxito.
Maria Hermínia Tavares – Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)