O ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou em interrogatório no Supremo Tribunal Federal (STF) ter buscado comandantes das Forças Armadas para discutir alternativas para questionar o resultado eleitoral após ser derrotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022. Em um depoimento que durou pouco mais de duas horas, ele itiu ter tratado com auxiliares da possibilidade de adotar instrumentos como o Estado de Sítio ou a chamada Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Segundo o ex-presidente, porém, as medidas foram descartadas e não havia “clima”, “oportunidade” e “base minimamente sólida para qualquer coisa”, em uma alusão à uma tentativa de golpe no país. Ao testemunhar no caso, os ex-chefes do Exército e da Aeronáutica descreveram esses debates como de teor golpista, o que Bolsonaro negou.
— Golpe não são meia dúzia de pessoas, dois ou três generais e meia dúzia de coronéis. Vejam 64. Falar em golpe de estado ? O que aconteceu depois do meu governo (no 8 de janeiro), sem armas, sem núcleo financeiro, sem qualquer liderança, isso não é golpe — disse Bolsonaro. — Da minha parte nunca se falou em golpe, é uma coisa abominável. É fácil começar, mas o “after day” é que é simplesmente imprevisível.
Bolsonaro foi interrogado no STF pelo ministro Alexandre de Moraes, relator da ação penal em que é réu por tentativa de golpe e outros quatro crimes. Em outro momento do depoimento, o ex-presidente foi questionado pelo magistrado sobre as elaboração de uma minuta golpista, citada na delação de Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens, mas afirmou que não teve o ao documento.
— Teve reunião que tratamos de GLO, porque os caminhoneiros estavam parando, tratamos sobre o que poderia acontecer com aquela multidão. Como falou o general Freire Gomes, nós estudamos possibilidades, outras, dentro da Constituição — afirmou Bolsonaro. — Discussão sobre esse assunto já começou sem força, de modo que nada foi à frente. A ideia que alguns levantavam seria o estado de sítio, por exemplo. Não procede o enxugamento.
Segundo o ex-presidente, em uma reunião com comandantes das Forças Armadas, no Palácio da Alvorada, após as eleições, foi exibido um documento com considerações a respeito da situação do país. Naquele momento, apoiadores do seu governo se aglomeravam em frente quartéis e caminhoneiros fechavam estradas pedindo uma intervenção militar no país.
— Foi ado na tela os considerandos de forma bastante rápida. Não havia da nossa parte uma gana, mesmo que nós encontrássemos algo na Constituição. O sentimento de todo mundo é que não tinha nada o que fazer e nós precisamos entubar — disse o ex-presidente.
Ele acrescentou que não teve o à minuta golpista citada pelo seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid, que firmou um acordo de delação premiada com a Polícia Federal. Em seu depoimento, Cid disse que Bolsonaro fez ajustes no documento, que previa a prisão de Moraes.
— Falar contra autoridades, sugerir prisão, isso aí na nossa reunião não estava previsto isso. O que estava previsto, e repito à Vossa Excelência que eu gostaria de ter o ao documento para discuti-lo. Se eu não estou tendo o, não tenho como discutir. As conversas eram bastante informais, não era algo proposto aqui, vamos decidir. Nada disso aconteceu. Ver se existia alguma hipótese de algum dispositivo constitucional para ver se a gente atingia o objetivo que não tínhamos atingido no TSE, e isso foi descartado depois da primeira ou da segunda reunião.
O interrogatório ocorre no âmbito da ação penal que avalia se Bolsonaro e outros sete réus, o chamado “núcleo crucial”, planejaram um golpe de Estado para impedir a posse do presidente Lula no fim de 2022. Eles são acusados dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, organização criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Voto impresso
Bolsonaro iniciou seu depoimento na ação penal que responde por tentativa de golpe no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma defesa do voto impresso. Ele foi questionado pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, sobre declarações em reunião ministerial de julho de 2022. Na ocasião, ele criticou o sistema eleitoral do país. O ex-presidente, contudo, negou ter realizado qualquer ação ilegal e repetiu que não saiu das “quatro linhas da Constituição”.
— Não me viram desrespeitar uma só decisão. Em nenhum momento eu agi contra a Constituição. Eu joguei dentro das quatro linhas o tempo todo. Muitas vezes me revoltava, falava palavrão,, sei disso. Mas, no meu entender, fiz aquilo que tinha que ser feito — afirmou Bolsonaro.
Segundo o ex-presidente, a defesa do voto impresso era sua “retórica” como deputado federal, que também adotou quando se elegeu ao Palácio do Planalto.
— Essa foi a minha retórica que eu usei muito enquanto deputado e depois como presidente também, buscando o voto impresso como uma forma a mais de ter uma barreira contra a possibilidade de se alterar o resultado das eleições — disse Bolsonaro.
O ex-presidente declarou que, se não houvesse “essa dúvida” sobre o sistema eleitoral eles não estariam ali.
— Para o bem da democracia, seria bom que algo fosse aperfeiçoado para que não pudesse haver qualquer dúvida sobre o sistema eleitoral. Se não houvesse essa dúvida, com toda certeza nós não estaríamos aqui hoje.
Após Bolsonaro falar sobre o assunto por alguns minutos, Moraes afirmou que o inquérito não tratava sobre a urnas eletrônicas.
— Na verdade, não há nenhuma dúvida sobre o sistema eletrônico e esse inquérito não tem absolutamente nada a ver com as urnas eletrônicas. Absolutamente nada — disse o ministro do STF.
As seguidas tentativas de descredibilizar o sistema eleitoral brasileiro são um dos elementos da denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe. Uma Proposta de Emenda à Costituição (PEC) que previa a impressão dos votos chegou a ser analisada pela Câmara em agosto de 2021, mas foi rejeitada pelos parlamentares.
As urnas eletrônicas são usadas no país desde 1996, sem que nunca tenha havido a comprovação de fraudes. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) utiliza mecanismos de auditoria e verificação dos resultados que podem ser efetuados por candidatos e coligações, pelo Ministério Público, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo próprio eleitor.
Em outro trecho do depoimento, Bolsonaro negou ter pressionado o ministro da Defesa a apresentar um relatório que apontasse falhas nas eleições de 2022. As Forças Armadas integraram o grupo responsável por fiscalizar a votação na época.
— O que eu pedia sempre para o ministro da Defesa era para fazer o relatório mais imparcial possível, e que só colocasse ali o que não tinha sombra de dúvida. Eu acho que entregou no momento certo, não tinha prazo — afirmou Bolsonaro.
8 de Janeiro
O ex-presidente também procurou ressaltar no depoimento que não tinha nada a ver com os acampamentos montados na frente dos quartéis que pediam intervenção militar no fim de 2022. Bolsonaro chamou alguns de manifestantes de “malucos” por defender o Ato Intitucionalnº 5 e intervenção militar.
— Agora, tem sempre os malucos, que ficam pedindo AI 5, intervenção militar… até porque não cabia isso. Nós não estimulamos nada de anormal — disse Bolsonaro.
O ex-presidente defendeu ainda que a Polícia Federal deveria investigar quem eram as pessoas que convocaram os atos de 8 de janeiro. Segundo o político do PL, era um “pessoal conservador diferente do nosso”.
— Não sei porque a Polícia Federal não investigou essas pessoas para ir até o 8 de janeiro [em Brasília]. Essas pessoas foram embora, e deixaram o povo acampado lá. Não procede que eu colaborei com o 8 de janeiro — disse ele, e completou: — Não tem nada meu ali estimulando aquela baderna que nós repudiamos, que nós nunca fizemos isso ao longo dos anos.
Desculpas a Moraes
Questionado por Moraes sobre afirmações feitas na mesma reunião ministerial, de julho de 2022, em que insinuou corrupção de integrantes da Corte, Bolsonaro disse que não tinha indícios de tais acusações e se desculpou pelas declarações.
— Não tenho indício nenhum. Era uma reunião para não ser gravada. Então, me desculpe, não tive intenção de acusar de desvio de conduta contra os três — disse o ex-presidente, em relação a Moraes e os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
Esta é a primeira vez que Bolsonaro e Moraes ficam frente a frente em uma audiência na Primeira Turma da Corte para responder a questionamentos sobre a trama golpista. O ex-presidente e o ministro do Supremo já estiveram na mesma sala durante o julgamento da denúncia, em março deste ano, mas não interagiram.
Em um momento de descontração entre os dois, Bolsonaro perguntou se o magistrado gostaria de ser seu candidato a vice em 2026. Moraes, após receber o convite inusitado, disse que não aceitaria.
Frente a frente com Moraes
Desde a semana ada, Bolsonaro tem demonstrado grande expectativa com o encontro. Ele disse “estar muito feliz” com o depoimento e que seria “uma oportunidade de esclarecer o que aconteceu”. Ao chegar ao Supremo nesta manhã, ele afirmou que pretende mostrar vídeos e, se depender dele, “serão horas” de oitiva.
Quando foi intimado a falar sobre a trama golpista na Polícia Federal, em fevereiro de 2024, Bolsonaro optou pelo direito de ficar em silêncio.
A Procuradoria-Geral da República acusa Bolsonaro de ter liderado uma conspiração golpista, que começou em 2021 com repetidos questionamentos à confiabilidade das urnas eletrônicas.
A partir de então, escreveu a PGR, o presidente “adotou crescente tom de ruptura com a normalidade institucional”. Após perder as eleições de 2022, o ex-presidente teria começado a articular uma trama para evitar a posse de Lula. Para isso, ele teria participado da formulação e edição de minutas golpistas que previam prisão de autoridades, a realização de novas eleições e uma intervenção militar.
A PGR ainda afirma que Bolsonaro estava a par do plano Punhal Verde e Amarelo, que, segundo as investigações, previa “neutralizar” o ministro Moraes, o presidente Lula e o vice Geraldo Alckmin.
Nesta segunda-feira, Bolsonaro viu o seu ex-ajudante de ordens – o tenente coronel Mauro Cid – dizer que ele editou o decreto golpista.
De acordo com Cid, que depôs na condição de “réu delator”, Bolsonaro “enxugou” o documento, mantendo a determinação de prisão de Moraes, mas excluindo o nome de outras autoridades, como o do então presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e demais integrantes da Corte, listados em versão anterior. Ainda de acordo com Cid, Bolsonaro não aceitava a derrota nas urnas e tentava “encontrar” indícios de fraudes para anular o pleito.
— De certa forma, ele (Bolsonaro) enxugou o documento, retirando as autoridades das prisões. Somente o senhor (Moraes) ficaria como preso — disse Cid no interrogatório na segunda-feira.
Mariana Muniz, Daniel Gullino, Ivan Martínez-Vargas e Eduardo Gonçalves/O Globo — Brasília